por Fatini Forbeck*

Essa é a afirmação do mestre Nelson Sargento, grande pilar do Samba brasileiro, que nos faz refletir sobre a trajetória desta tecnologia social até aqui.

2020, pandemia e as mais de 30 rodas de Samba registradas que ocorrem nos finais de semana na cidade estão paradas. Logo, o Samba agoniza mais uma vez sem os corpos presentes se afetando, fortalecendo, compondo e vivenciando a tão preciosa roda, tecnologia ancestral de sobrevivência, comunicação e evolução preta. É a partir dela que vem o movimento, o equilíbrio e o reconhecimento, potencializando sempre aqueles que estão dentro compondo o todo, vivendo a lógica comunitária que nos mantém de pé até hoje. Da gira aos círculos de oração, da capoeira ao rap, do Samba às batalhas SLAMs, tudo vem dela. E longe de tal ciência é impossível sobreviver nessa sociedade pirâmide.

O Samba é raiz, força, resistência, poesia, beleza, alegria, choro e fé. O Samba é uma das mais puras definições de negritude. Tal criação foi gerada no berço da humanidade, AFRIKA, continente de poder e graça.

Tal ciência de tempos em tempos tem de se reinventar para permanecer viva, mas, nas últimas décadas, práticas colonizadoras têm se infiltrado nos espaços onde o Samba é construído, descaracterizando algo tão poderoso e importante para sobrevivência da população negra.

2020 chega acompanhado de vários desafios e surpresas. Após o início, com o carnaval de BH, e a expectativa de que seria o triunfo da justiça por ser um ano regido por Xangô, somos surpreendidos com uma pandemia. Além da letalidade, a Covid-19 também trouxe outras dores, como o isolamento e o distanciamento social.  E é aí que o bagulho ficou louco, porque em uma cidade como BH, considerada calorosa e receptiva, como manter vivos e de pé quilombos afetivos como o Samba?

Mais do que um simples evento, as rodas de Samba são um espaço de afetividade! Isso mesmo, Samba é afeto! Só quem já foi ao Bar do Cacá sabe bem do que estou falando. Da recepção à relação com as pessoas presentes, esse quilombo de afeto transborda alegria, acolhimento, espiritualidade e reconhecimento. Seu Cacá Santos, aquele que coordena e cuida desse movimento, ancestralidade viva do Samba de Belo Horizonte, todos os domingos cumprimenta um por um, agradece a presença e pergunta: ”Tá tudo bem aí, minha filha?’’. Atendentes do bar sempre pegam a cerveja mais gelada no fundo do freezer, a banda Simplicidade Samba já é tradição e sempre toca poesias e músicas  carregadas de emoção e história, tanto por quem canta e compõe, quanto por quem escuta, dança e celebra.

O que dizer do Quintal dos TrêsPreto com suas rodas simultâneas e o famoso quibe fritim na hora? Da Casa da Família, com seus encontros lotados de gente bonita e calor humano? Daquela vista incrível e da cerveja mais gelada do rolê no Deu Brasa? E o Samba na rua com aquela comida maravilhosa servida à vontade no Botequim Nossa Roda, firmando a comunhão entre os nossos, celebrando a vida do Samba e tudo o que ele representa pra nós? Aiiiii, o coração aperta de saudade desses espaços de cuidado e resistência.

Sim, Samba é afeto, e quando falamos de afetividade também falamos de colo, carinho, força, resiliência, mulher, preta!

O Samba também agoniza quando sua verdadeira história é omitida e apagada. Você sabia que o Samba foi cuidado e disseminado através dos corpos de mulheres negras? As baianas, símbolo da resistência brasileira, além de sustentar suas famílias por meio da fé e empreendedorismo (leia sobre as escravas de ganho), também mantinham tradições vivas. Mas em razão de práticas de morte executadas pela sociedade brasileira colonial, saíram de sua terra mãe Bahia e foram para o Rio de Janeiro, levando o Samba como instrumento de sobrevivência. 

Das figuras fundantes desse movimento, apresento Tia Ciata, Hilária Batista de Almeida. Baiana, nascida em 1854, filha de Oxum, cozinheira, esposa, mãe de 14 filhos e filhas paridos e de uma nação sambista. Considerada por muitos como uma das figuras mais importantes e influentes para o surgimento do Samba no Brasil. Mãe de Santo, foi iniciada no candomblé em Salvador por Bangboshê Obitikô. Tia Ciata virou símbolo da resistência negra no Brasil pós-abolição quando, aos 22 anos, levou o Samba de roda para o Rio de Janeiro. Ao abrir as portas de sua casa para reuniões de sambistas pioneiros quando a prática ainda era proibida por lei, tornou-se uma das principais incentivadoras do Samba.

Com essa breve contextualização histórica, já é possível percebermos que o Samba é uma mulher negra. Infelizmente, essa omissão custa caro à memória de mulheres como Tia Ciata, Clementina de Jesus, Georgette, Geovana, Jovelina Pérola Negra, Dona Ivone Lara, Elza Soares, Leci Brandão e tantas outras rainhas do Samba. O racismo e o machismo têm assolado estruturalmente a construção desse legado, invisibilizando narrativas e vozes, principalmente nas rodas de Samba onde mulheres negras em sua maioria não são protagonistas, pois geralmente são convidadas apenas para a palhinha ou para uma participação especial.

O Samba se faz uma mulher negra quando gera vida, alimenta a mente e acalenta o coração. O que nos consola é ver movimentos potentes reivindicando esses espaços, resgatando a história e declarando ao mundo a importância dos nossos corpos na construção do legado sambista brasileiro. É com muito orgulho que quero ressaltar o trabalho de iniciativas como o Samba das Pretas BH, que tem como conceito o protagonismo da mulher negra no Samba, da portaria ao palco. E também o Samba Mulheres das Gerais, Samba da Roda da Saia e Pagode das Minas. São movimentos transformadores que potencializam e dão oportunidades a mulheres sambistas, com muita qualidade e destreza, protagonizando a cena e subvertendo a lógica racista e patriarcal. Não poderia deixar de citar rainhas do Samba mineiro que têm construído um legado de força e consistência como Dóris Samba, cantora, mestre em educação e matrigestora do projeto Cantando a História do Samba; Adriana Araújo, mãe, cantora, realeza e Orixá do Samba em BH e com certeza em todo país; a ancestral Dona Jandira; a querida Manu Dias; as maravilhosas do Samba Origem; a potente Cinara Ribeiro e tantas outras vozes de fé.

O Samba, além de ser uma resistência afetiva, também é um polo econômico que sustenta milhares de famílias em toda cidade. A paralisação dos eventos desencadeou uma série de desafios a serem enfrentados pelo setor cultural. Segundo pesquisa do Grupo Movimente-se, 98% dos espaços culturais, artistas, instrumentistas, trabalhadores e prestadores de serviços foram afetados negativamente pela pandemia. A produção de conteúdo digital em forma de lives, editais direcionados ao fortalecimento da cultura e vaquinhas online têm “segurado a barra” econômica e movimentado o setor cultural. 

Não deixe o Samba morrer

Essa foi a ordem que nossa rainha Alcione nos deixou. São tempos difíceis. Muitas incertezas e desafios pela frente, mas o Samba sempre esteve presente com seu abraço e reza que aquece nossos corações. Como continuar o legado das nossas mais velhas e antigas? Com a sabedoria da reinvenção, a alegria de viver e o afeto que só quem se conecta com sua ancestralidade pode vivenciar.

Importante reverenciar os mais velhos? Com certeza, mas é fundamental convidar os mais novos para conhecer e seguir construindo o caminho que Samba morro e ladeira abaixo. Das festas de família aos festivais nacionais, precisamos ressaltar a importância da juventude. Produtores jovens têm se destacado no cenário cultural, propagando o Samba como o precursor de toda gênese artística e cultural no Brasil. 

Novas narrativas de futuro podem ser potencializadas a partir do resgate e da construção coletiva, palavras que podem ser a saída para que o Samba deixe de agonizar por ora. O Samba agoniza, mas não morre, pois estaremos junt@s, ligad@s através dele. Alinhados com o que é possível no momento, alguns espaços retomam suas atividades mantendo o distanciamento e com cuidados básicos, mas com a mesma energia, afeto e resistência de sempre.

Seguiremos celebrando, reverenciando e amando o Samba, pois ele é a poesia que desnuda a alma, dicionário de sentimentos, o embalo do amor que vivi. Também é forte como a morte, o grito do aflito, os braços da batucada que acolhe quem deixou por um momento de sorrir. É atravessar um mar de alegorias, o banzo caudaloso a banhar o rosto de quem vem de lá, a criatividade da menina pretinha apaixonada, a palma da mão da negrada. É a apoteose do gozo, o alinho do corpo, a religião que escolhi viver. Do bom Samba sou escrava e nada poderá me afastar do que eu sou: mulher preta de Samba, do Samba, pro Samba, como deve ser.

. Fatini Forbeck é filha das águas doces e do ferro, cria do Ressaca, amante do Samba e do Hip Hop, assistente e educadora social, produtora cultural, fotógrafa, antirracista, antibolsonaro e tudo que ele representa. #UBUNTU

. ilustrações por esther az.

. esta publicação é parte da chamada pública de textos realizada pela vai ter, parte do projeto BH 121, nº0951, aprovado no Edital 2017 oriundo da Política de Fomento à Cultura Municipal (Lei nº 11.010/2016).

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