por Carlos Andrei Siquara *

O cartaz com os números de WhatsApp disponíveis para atendimento remoto segue colado na entrada da livraria Scriptum, localizada na rua Fernandes Tourinho, na Savassi, mesmo após a loja reabrir suas portas. Poucos metros adiante, na livraria Quixote, a cena se repete, e, à primeira vista, a vitrine se impõe austera. Os livros se destacam e sente-se falta aqui e ali dos reflexos sobre a superfície de vidro dos gestos das pessoas folheando páginas, batendo papo com amigos ou levantando suas xícaras de café. Afinal, sem as mesas espalhadas pela calçada e ocupadas pelos frequentadores, o cenário da livraria parece, digamos assim, um tanto incompleto.

A aparente calmaria do lado externo, contudo, não se perpetua quando se dá um passo adentro. Atendentes falando ao telefone e visualizando a tela do celular comercial deixam claro que o movimento ali não está suspenso, mas mudou de configuração totalmente. Talvez um dos últimos empreendimentos a entrar na rota do delivery – mais associado ao setor de bebidas e alimentos –, o seguimento dos livros também precisou criar seus “menus” para sobreviver diante das restrições de circulação social recomendadas para conter a pandemia.

“Já aconteceu de alguém ligar e perguntar: o que vocês têm aí de filosofia? E nós tiramos foto de todos os livros e mandamos para a pessoa. Dá muito mais trabalho, mas hoje, mesmo com a livraria aberta, os pedidos por WhatsApp representam metade das nossas vendas”, diz Alencar Perdigão, proprietário da Quixote. A nova rotina, que vem se delineando desde março, impulsionou a criação de outros canais, como a Quixote em Casa, apontando, ironicamente, para o provável caminho sem volta dos atendimentos online em serviços cujo diferencial até então se baseava na presença física, como é o caso das livrarias de rua, de determinados sebos e das feiras de publicação independente de Belo Horizonte. 

Alexandre Machado, à frente da Livraria da Rua, situada na rua Antônio de Albuquerque, resistiu enquanto pôde. Diferentemente de outros livreiros da cidade, ele não seguiu com o trabalho remoto ininterruptamente e atendeu alguns pedidos por cerca de um mês até o prefeito Alexandre Kalil (PSD) liberar a retomada presencial das atividades desse ramo. “A Livraria da Rua é uma livraria voltada para a aglomeração, no bom sentido. Aqui é o lugar de gente, do real, do encontro, da música que era apresentada aos sábados. Eu entendo essas coisas como essenciais. Eu vejo a livraria como um espaço voltado muito para o sensorial, o que não acontece da mesma maneira no mundo virtual e nem vai acontecer”, reflete Machado.

Nesse hiato ele decidiu acelerar a proposta de um aplicativo que vai permitir ao público realizar seus pedidos pelo celular e estuda a criação de uma loja virtual a ser acessada por qualquer navegador. “Com exceção do perfil no Instagram, nós quase não tínhamos nenhuma vida online. A rede social acaba complementando nossa atuação, divulgando nosso trabalho”, diz Machado. “Agora nós estamos investindo no aplicativo, que já existia antes da pandemia, mas não funcionava perfeitamente. E vamos ter também a loja virtual que será algo bem objetivo com lista dos títulos disponíveis e sugestões de leitura”, completa o livreiro.  

De acordo com ele o dispositivo para celular deve ficar pronto até dezembro, já a plataforma na internet deverá ser lançada no próximo ano. Ingrid Mello, responsável pela Livraria do Belas, segue em direção semelhante. Entre os empreendimentos desse tipo na cidade, o seu ainda permanece sem previsão de poder receber os leitores porque seu espaço está vinculado à sala de cinema, que inclusive busca financiamento para não encerrar suas atividades definitivamente. 

“Nós talvez sejamos a única livraria de rua que está fechada após as autorizações da prefeitura. Eu já imaginava isso lá atrás, sabia que seria difícil nos adequarmos a esse período, e por isso estamos numa fase de planejamento para colocar no ar um site da livraria”, antecipa Mello. O maior desafio para ela é não deixar que esse projeto seja compreendido apenas como um e-commerce. “Eu o vejo como algo mais amplo, que abarque desde uma newsletter até um blog. Não quero que o site seja aquela coisa fria porque não estamos a fim de bater de frente com grandes redes que também vendem livros. O que queremos propor é um espaço virtual que forneça um pouco da experiência de frequentar a livraria e de ser atendido por nós”, explica a livreira.

Cultivar a relação com seu público, aliás, se tornou um dever para Mello. Nos últimos meses, o clube de leitura, que funcionava na Livraria do Belas há mais de sete anos continuou virtualmente, atraindo novatos e até propondo bate-papo com escritores, a exemplo do pernambucano Yuri Pires, autor de “A Pedra” (2017). Outra iniciativa surgiu no meio dessa turbulência: foi o movimento “Queria que você lesse esse livro” que teve duas edições, sendo a última no dia 25/9. 

A ideia se baseia em criar uma espécie de rede de compartilhamento de livros entre participantes mediante cadastro na loja. “Nós percebemos que com o isolamento se tornou mais difícil as pessoas acessarem não só as livrarias mas também as bibliotecas públicas. Então, pensamos em uma forma de estabelecer uma troca de livros entre elas. As pessoas nos mandam os títulos, nós realizamos uma curadoria a partir dos gostos descritos no formulário do cadastro e direcionamos um livro específico para cada um delas”, diz Mello. 

Para participar basta pagar uma taxa de R$ 10 reais que cobre os custos de frete, além de doar um livro considerado relevante. “O objetivo não é você enviar um livro aleatório. A intenção é que seja escolhida uma obra que você acha que seria legal que alguém lesse. Então nós pedimos que o participante escreva porque ele acha aquele livro bacana, e, a partir disso, nós mandamos uma cartinha com essas observações junto com o exemplar a ser recebido por outra pessoa em casa”, explica Mello. 

Welbert Belfort, proprietário da Scriptum, já possuía um site de projeção nacional, o que garantiu a continuidade dos seus serviços, pois as vendas locais foram menores se comparadas às demandas externas. “Nós registramos um aumento de 100% no número de vendas durante a pandemia. Atendemos principalmente São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, além de Bahia, Pernambuco e Pará”, conta Belfort. Recentemente, ele firmou parceria com a Companhia das Letras para comercializar livros dessa editora para qualquer região do país sem acréscimo de frete, pois ela mesma se encarrega de realizar as entregas.

Com menos necessidade de correr para criar mais canais de interface com os leitores, neste momento, o livreiro estuda alternativas para fazer com que os lançamentos online tenham resultados próximos dos promovidos presencialmente. Essa, aliás, é uma das principais preocupações também entre os editores, afinal os eventos impulsionam a repercussão e a venda dos livros. 

“Eu tenho pensado que uma saída pode ser estimular a venda no site durante as lives da seguinte forma: quem quiser que o livro seja autografado pelo autor, deverá aproveitar aquele momento do bate-papo para realizar a compra. O escritor depois da live vai assinar cada cópia, e o leitor poderá buscar o seu exemplar já autografado na loja posteriormente. Quem quiser comprar o livro para presentear também poderá especificar no site em nome de quem deverá ser feito o autógrafo”, detalha Belfort. 

Se hoje a Scriptum consegue ter essa presença no mercado nacional isso se deve tanto aos textos publicados pela editora de mesmo nome vinculada à livraria, quanto ao sólido acervo especializado em áreas como psicanálise, arte e literatura, além de títulos, inclusive, importados e mais facilmente encontrados ali. Porém, sabe-se que esse mercado é extremamente competitivo, o que não estimula livreiras, a exemplo de Etiene Martins, criadora da livraria Bantu, localizada na avenida dos Andradas, a investir em algo parecido.

Ela relata que o impacto da pandemia sobre o seu negócio foi duro. Centrada em obras de autoria negra com forte ligação com debates contemporâneos, como a luta antirrascista, incluindo também trabalhos de ficção e de poesia, a Bantu esteve em vias de deixar de existir porque faltaram recursos em caixa para arcar com a despesas mensais. O que reverteu essa situação foi uma vaquinha online empreendida por Martins em junho deste ano. Após quitar as contas atrasadas, ela resolveu tirar da gaveta um projeto que desejava há mais tempo: fazer um clube do livro infantil, chamado Estantes Coloridas.

“Eu acho que para mim não é bacana ter uma loja virtual neste momento por causa da concorrência desleal que grandes plataformas oferecem no preço do livro. Eu tive essa ideia do clube como uma alternativa e uma maneira de os pais terem mais opções para apresentar um mundo colorido para suas crianças. É interessante mostrarmos histórias em que personagens negros e indígenas também são protagonistas, além dos brancos. Eu acho que esse é um momento de se reinventar e é como dizem os mais velhos: ‘a dificuldade é que faz o sapo pular’”, ri em seguida Martins.

Contatos que vão além das proximidades geográficas

Um dos efeitos dessa guinada para o ambiente online foi a descoberta de leitores que estavam fora do perímetro de abrangência não só das livrarias de rua mas de sebos cuja atuação, antes da pandemia, era predominantemente local, como o Ubuntu, no bairro Glória, na região Noroeste da capital mineira. Concebido pela livreira, pedagoga e professora Evellem dos Santos Oliveira, o espaço cresceu na casa dos seus pais com uma pequena coleção que hoje já abarca mais de 2.500 volumes. Cerca de 1.700 desses estão cadastrados também na Estante Virtual, mas Oliveira ressalta que se surpreendeu com pedidos que não vieram de outras cidades, como era de praxe, mas de lugares distintos da própria Belo Horizonte. 

“Eu acho que consegui alcançar todos os bairros mesmo, principalmente quando passei a oferecer uma alternativa de entrega. Chegaram pedidos do Barreiro, do Sion, além de Contagem e Ribeirão das Neves”, lista. Apesar de ter ficado feliz que as vendas aumentaram no online, ela disse que o isolamento praticamente interrompeu as ações do sebo e prejudicou principalmente os moradores do entorno.

“Meu sebo parece mais uma casa. Eu recebia as pessoas que chegavam aqui para bater papo, folhear os livros. Nós não estamos na área central de Belo Horizonte, então ele tem uma importância grande para quem está aqui na região Noroeste. Isso foi muito sentido pelas pessoas que nos têm como referência, principalmente as crianças que vinham aqui cotidianamente”, lamenta Oliveira. 

Já Marcelo Silva Bernardes conta que mal havia inaugurado o Sebo do Gueto BH, no dia 14/3, e dois dias depois precisou baixar as portas. Novamente, as vendas online foram a salvação do negócio durante esses quase sete meses, mas ele entende que só esse braço não condiz com a proposta do empreendimento, o qual, a seu ver, ancora-se no diálogo com a cidade e com os movimentos sociais. 

“Eu quero que as pessoas voltem a entrar aqui e olhem para a força que tem esse prédio, que está em frente à praça da Estação. Quero que elas reparem que ele não é um lugar vazio mas que está em constante movimento. A minha porta dá para uma varanda, com vista para a avenida dos Andradas, portanto, ela está aberta para a cidade”, frisa.

Com 72 anos de existência, a Livraria Amadeu é uma verdadeira rocha. Com duas sedes, sendo a matriz encontrada na rua dos Tamoios e a filial na rua Guarani, é o mais antigo sebo da capital e não se intimida com as intempéries. Lourenço Carrato Cocco, filho de Amadeu Rossi Cocco, fundador da loja, recorda uma máxima do seu pai que adquiriu casca grossa e vasta experiência trabalhando com livros.

“‘Na crise sempre se lê mais’, era o que meu pai dizia. Ele ficou à frente da loja durante 60 anos, porém até abrir seu próprio negócio ele trabalhou 15 anos em livrarias de BH. Essa é uma frase de impacto, mas acho que ela reflete bem a visão de quem conhece o mercado mesmo”, pontua Cocco. 

De acordo com ele, seu pai relatava que sempre quando o país entrava numa desaceleração econômica as pessoas recorriam mais ao livro porque passavam a permanecer mais tempo em casa, a fim de economizar. “No nosso caso, nós vimos um aumento das vendas, especialmente no online, mas com a greve dos correios isso caiu um pouco”, diz o livreiro. Ele acredita na continuidade dos sebos.

“Enquanto existir essa turma que gosta de tocar no papel, ver o livro na prateleira e frequentar a livraria, nós vamos sobreviver. Claro que nada é eterno, mas eu ainda aposto nessa turma que é o nosso elo de sobrevivência”, conclui Cocco.

Entre a cautela e a necessidade de fazer as máquinas rodarem

A jornalista e editora Leida Reis precisou interromper as atividades da sua Livraria Páginas quando esta não tinha nem cinco dias de funcionamento, na rua Padre Eustáquio. De lá para cá, precisou cancelar as programações e concentrou fôlego nas vendas via redes sociais. Paralelamente, Reis precisou também reavaliar o calendário da Páginas Editora, sua segunda cria, e recorreu, como tantos outros editores e livreiros, aos lançamentos virtuais. 

“Não é a mesma coisa. O número de livros vendidos se comparado aos presenciais é bem inferior. Eu acho que nós vendemos em média um terço do volume que poderia ser comercializado no lançamento presencial”, afirma ela. As demandas da editora foram poucas até julho, quando o jogo começou a mudar e apareceram novos autores interessados em publicar seus trabalhos, segundo a jornalista.

“Acho que as pessoas passaram a dar mais valor a seus projetos pessoais. Quando uma coisa externa, tipo essa pandemia, impede você de sair de casa, isso mostra o quanto a vida pode ser vulnerável. Mesmo uma pessoa jovem pode morrer. Então, surgiram essas necessidades, e hoje nós estamos com um ritmo de lançamento bem acelerado. Alguns livros já estão escalados para novembro e dezembro e outros nós estamos entrando em parceria para buscar recursos via financiamento coletivo”, relata Reis.

Em razão disso, ela precisou contratar mais profissionais, o que vai na contramão da avalanche de desemprego identificada em vários setores da economia do país. “Isso foi uma coisa superpositiva. Antes eu tinha uma pessoa que trabalhava comigo na editora mas ela se dividia também com algumas necessidades da livraria. Como o movimento da editora aumentou, eu pude voltar a investir novamente na loja e contratei um livreiro e um profissional de marketing”, comemora a jornalista.   

Outras editoras têm enfrentado maiores dificuldades. Maria Mazarello Rodrigues, fundadora da Mazza Edições – que vai completar 40 anos em 2021 e possui um amplo catálogo de livros infantojuvenis e de títulos com discussões ligadas às áreas de literatura, história e educação, com destaque para as questões étnico-raciais –, é uma delas. “Nada do que eu tinha preparado para colocar na gráfica em 2020, de fato, aconteceu”, conta Rodrigues. Seus projetos, assim, tiveram que ser adiados para o próximo ano. 

De acordo com ela, o que vem mantendo a editora de pé são as propostas de terceiros que recorrem à expertise da Mazza. “Eu estou, como dizia minha mãe que era lavadeira e trabalhava para sustentar nove irmãos, ‘lavando pra fora’. Se não fossem esses trabalhos de produzir livros para os outros, a Mazza estava fechada”, revela. “É isso que vai me permitir aguardar 2021 e ver o que vai rolar”, desabafa ela. 

Essa apreensão também é compartilhada pela editora Carol Magalhães, que teve todo seu acervo destruído no temporal do início do ano, quando um volume gigantesco de água invadiu seu apartamento no bairro Santo Antônio, onde funcionava a Quintal Edições. Ela tinha sido convidada para participar de um evento em São Paulo com outras editoras, que até sinalizaram a possibilidade de doar alguns livros para ajudá-la a se reestruturar, mas com o cancelamento do encontro, em razão da pandemia, tudo isso se perdeu.

“Foi realmente surreal emendar um problema no outro. Ao menos eu consegui levar adiante a produção do livro ‘Amigas que Se Encontraram na História’ (de Angélica Kalil e Mariamma Fonseca), porque esse trabalho havia sido gestado há dois anos e envolveu uma pesquisa enorme de ilustração. Fazer esse livro virou mesmo um compromisso”, diz Magalhães. “Mas as perguntas não param, e temos o desafio de entender como vai funcionar o mercado de agora em diante”, acrescenta ela.  

O sentimento de incerteza é geral e Wallison Gontijo, sócio-fundador da Impressões de Minas ao lado de Elza Silveira, demonstra ter várias reservas quanto ao próximo ano, especialmente porque precisou fazer escolhas. Dentre elas, ele optou por postergar o lançamento do livro do cantor e compositor Otto, “Meu Livro Vermelho”, para 2021. “Esse trabalho teve um investimento alto, e, além desse, há outros, com tiragens até maiores, que nós também não temos condições financeiras para que sejam finalizados neste ano”, relata Gontijo.

Conhecida pelo seu caráter dinâmico e seu amplo espectro de atuação ao ofertar cursos e não só produzir livros, a Impressões de Minas, no entanto, teve uma redução de 50% do que havia previsto para rodar em 2020. No meio desse turbilhão, os editores, que demonstram um cuidado especial com a materialidade do livro – investigando até o uso de diferentes papéis num mesmo projeto gráfico –, tiveram que repensar estratégias, e uma delas foi renovar o site, que será uma importante vitrine.

“Acho que a conclusão disso só vai acontecer no ano que vem. A Impressões tem essa característica bem física, pensa o livro como objeto, e estamos trabalhando com um fotógrafo para levarmos isso da melhor maneira possível para a internet. A pessoa vai clicar no livro e vai poder ver todo o processo de produção do exemplar. Desde os papéis que foram usados até os detalhes das texturas, seja da capa ou do miolo. Nós queremos que o site traga uma experiência mais completa para o público”, explica Gontijo. 

Em meio ao rearranjo de lançamentos, outros, de acordo com ele, se mostraram urgentes. É o caso do livro “Casa”, que reúne poemas do mineiro Mário Alex Rosa com ilustrações do próprio Gontijo. Os versos foram concebidos durante a quarentena e devem vir a público neste mês. “Esse é um livro de agora, não fazia muito sentido publicar ele depois, embora os poemas sejam atemporais. O Mário Alex é um grande poeta e o livro está muito lindo”, exalta o editor.

 “Nós também queremos publicar ainda neste ano um outro livro de poemas maravilhoso da Isabela Wilker, que é filha do José Wilker (1944-2014). Esse ainda não tem título, mas garanto que vai ter um projeto gráfico bem lindo”, antecipa ele.  

O aumento da produção de textos literários tem acontecido durante a pandemia e esses escritos passaram a chegar, inclusive, num volume crescente para a editora belo-horizontina Maíra Nassif, criadora da Relicário Edições. Apesar de ser muito interessante haver toda essa efervescência, ela conta que precisou dizer repetidos “nãos”. “Eu tive que declinar de tudo, infelizmente. Nós não estamos abertos para avaliação neste momento porque acumulamos muito trabalho. Não temos condições de avaliar e publicar esses textos. As pessoas, de certa forma, talvez tenham tido mais tempo para escrever, mas, por outro lado, as editoras não têm dado conta de acompanhá-las”, diz Nassif.

Sobre seu caso mais especificamente, ela explica que essa concentração de tomos a serem editados se deu porque no primeiro semestre suas atividades praticamente ficaram suspensas, uma vez que ela mesma precisou de um tempo para refletir sobre como poderia lidar com esse novo contexto. “Nós lançamos pouquíssimos livros perto do que estava previsto. Eu fiz essa pausa mesmo para observar, mas quando vi que a quantidade de livros pendentes estava só crescendo não tive como adiar mais e retomei os trabalhos”, completa Nassif.

Uma de suas estratégias para viabilizar as edições tem sido focar nas pré-vendas, entre elas figura o livro “Carta à Terra – e A Terra Responde”, da ambientalista francesa Geneviève Azam com prefácio de Ailton Krenak. Essa mesma prática tem sido exercida por Nathan Magalhães, editor cearense, radicado na capital mineira e fundador da Moinhos. No site de sua editora, por exemplo, é possível comprar previamente o romance “O Quarto Alemão”, da argentina Carla Maliandi, entre outros. 

“Em vez de sair feito louco criando um milhão de promoções, nós ampliamos o nosso período de pré-venda. Eu não acho que aplicar descontos de até 50% no valor do livro seja algo saudável para o mercado editorial”, opina Magalhães. Outra ideia que ele visualizou foi estreitar o contato com distribuidoras e livrarias com o intuito de estimular que elas confirmassem suas compras até 60 dias antes do lançamento dos livros. Porém, ele se deparou com um problema que parece ser estrutural.

“Eu acho que isso vai demorar muito tempo para ser resolvido, inclusive. São questões burocráticas de várias livrarias e distribuidoras, e, em razão disso, elas só conseguem fazer pedidos com cerca de dez, quinze dias de antecedência”, informa o editor. Ele conta que também tem reduzido o número de suas tiragens para 50%, mas, por outro lado, o volume de vendas no site cresceu nessa mesma proporção a partir de abril.

“O que nós fizemos foi tentar estar mais presente nas redes sociais, impulsionando o aumento de seguidores no nosso perfil do Instagram. Eu tentei ficar mais presente ali, fazendo vídeos e também algumas lives, e acho que isso se converteu na maior quantidade de vendas diretas no nosso site”, avalia Magalhães. 

Os limites e as potencialidades do digital

A valorização do livro e de outras formas de edição enquanto objeto, muitas vezes de produção artesanal, propiciou a expansão das feiras de publicação independente que se somaram aos tradicionais eventos da cidade, como as bienais do livro. As primeiras se diferenciaram com sua dedicação maior ao diálogo entre a literatura e as artes gráficas e visuais. A criação de zines, as ilustrações, os quadrinhos independentes, entre outras experimentações, fortaleceram, assim, um nicho, cujo desafio no momento é manter-se em desenvolvimento, quando promover esses tipos de encontro por enquanto não tem sido viável em razão da pandemia.

Um dos idealizadores das feiras Textura, Wallison Gontijo afirma que esta segue parada. “Nós estamos pensando em fazer uma edição virtual, mas todas as feiras estão passando por dificuldades em concretizar algo desse tipo. Nós teríamos que avaliar bem qual seria a plataforma que pudesse acolher todos os editores. E já aconteceram algumas experiências que não foram muito positivas, no sentido de que se investe muito trabalho e o retorno não é tão bom”, pontua Gontijo.

O editor atua também na organização de outras feiras, como a Urucum, que ressalta o aspecto plástico dos trabalhos, e a Curupira, centrada no universo da literatura infanto-juvenil. As duas também estão suspensas. “Essas feiras em si não agregam recursos financeiros para a Impressão de Minas, nós não ganhamos dinheiro para organizá-las, mas elas são muito interessantes para nós e para outros editores porque conseguimos realizar alguns lançamentos. E os lançamentos são fundamentais para o mercado literário. É o momento que nós conseguimos juntar o público, a editora, o autor, o livreiro, o impressor, o gráfico, o designer, além dos amigos”, explica ele.

Criador da Faísca, o artista gráfico Jão e a jornalista Helen Murta viabilizaram 23 edições da feira em Belo Horizonte. O próximo passo para eles era promover um festival que atrairia não só expositores, artistas e interessados do Brasil mas também de outros países, tendo como foco a técnica de impressão conhecida como risografia. Até que veio a pandemia e a dupla resolveu se arriscar numa edição que foi batizada Festival Internacional de Risografia: Experiência Virtual e segue com programação calcada em debates e lançamentos até dezembro.

“A pandemia chegou e afetou completamente os artistas, os microeditores, as gráficas, ou seja, toda a cadeia de produção dessa cena porque ela depende muito dos eventos presenciais, das feiras. A nossa ideia com essa transposição que estamos chamando de ‘experiência virtual’ parte de uma necessidade e de uma preocupação mesmo. Nós notamos que se fossemos esperar a pandemia passar talvez não ia existir mais essa cena. Então, juntamos forças em diálogo com outros editores e artistas para construir esse festival neste momento”, conta Jão.

Obviamente, algo se perde com essa configuração, especialmente porque os trabalhos que são apresentados nas feiras dependem de uma materialidade física difícil de ser contemplada no digital. Mas Murta observa que a própria limitação dos meios e do contexto atual casou com o principal tema de discussão do evento, a risografia.  “Nós estamos notando que a risografia lida o tempo todo com isso. Os artistas têm uma quantidade limitada de cores para trabalhar e um acesso limitado aos insumos, então constantemente eles têm que transformar essas limitações em potencialidade. E acho que isso tem tudo a ver com o festival”, sublinha ela.

Murta também ressalta a possibilidade de interação com artistas do mundo por meio das lives, especialmente aqueles vinculados ao estúdio Knust, que é uma referência internacional na investigação dos usos criativos da risografia. Para ela, o saldo desses diálogos tem sido extremamente positivo, e, mais do que conceber saídas milagrosas, ela reforça como as discussões fomentam uma reflexão coletiva. 

“Tem sido muito discutida a relação das artes gráficas com a cidade e a pandemia. Por mais que aos poucos entendemos melhor as coisas, nós saímos da fase do susto, ainda estamos pesando e pensando juntos o que vamos fazer. Eu sinto que todo mundo que trabalha com criações impressas está com uma vontade grande de saber o que vai ser daqui pra frente, e nós estamos buscando soluções, mas estamos justamente no processo de tudo isso, e temos mais perguntas do que respostas”, finaliza a jornalista.

* Carlos Andrei Siquara é jornalista especializado em cultura com ênfase na cobertura de literatura e artes visuais. Atualmente cursa mestrado em Estudos Literários (UFMG).

. ilustrações por esther az.

. esta publicação é parte da chamada pública de textos realizada pela vai ter e integra o projeto BH 121, nº0951, aprovado no Edital 2017 oriundo da Política de Fomento à Cultura Municipal (Lei nº 11.010/2016).

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