por Gabriel Araújo*

Lembro-me de novembro de 2019. Fechamos, no fim daquele mês, nossa primeira experiência curatorial. A Mostra Cinema Negro: Re-costuras e Afetos¹ ocupou o Galpão Cine Horto, um dos pouco usados cinemas de rua da capital mineira, durante quatro segundas do mês da consciência negra, exibindo curtas e longas brasileiros dos cinemas negros então produzidos no país. Até hoje tento entender o calor e o conforto que emanava daquelas sessões. Pessoalmente, digo que a experiência reforçou, em mim, a certeza de que outras formas de relacionamento e engajamento com o cinema – não necessariamente pautadas pela ânsia interpretativa de um filme cabeça ou pela euforia momentânea do cinema de massa – são, afinal, possíveis. Coletivamente, ouso acreditar que compartilhamos, naquelas quatro sessões, uma espécie de segredo: a provável construção de um espaço seguro onde era permitido compartilhar, com os filmes e por meio deles, intimidades e afetações que tanto diziam sobre as subjetividades ali presentes e sobre as experiências recorrentes de corpos negros e periféricos na cidade. “O aquilombamento é um caminho sem volta”, escrevi, esperançoso, na legenda de uma foto que tiramos na última sessão. Então, 2020. Uma pandemia inesperada que reserva, para além de todo o caos, a seguinte pergunta: como conquistar experiência semelhante num ano em que o encontro presencial, catalisador de forças e ânimo, faz-se impossível?

Certamente não sou o único espectador que sente falta da grande tela escura. Dos encontros que só o Cine Humberto Mauro consegue proporcionar. Das conversas e cervejas intermináveis pós-sessão, eventualmente nos bares do Maletta, eventualmente nas calçadas dos dois Mineirinhos – aquele que ainda tiver lugar disponível ao ar livre. Entretanto, cá estamos solitários em nossas salas e quartos, participando de festivais on-line e assistindo filmes pela tela do computador, torcendo para que algum amigo esteja disponível para papear assim que você terminar aquele curta que tanto queria ver e que tantas questões provocou. Muitas vezes, sem sorte, a resposta desse seu amigo vai chegar penas no dia seguinte.

Neste ano, o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul acertadamente escolheu como tema de sua 13ª edição “a experiência do abraço”. Pois o desafio que se interpõe para programadores, produtores culturais, cineastas e espectadores e espectadoras neste momento é o de justamente preservar e intensificar a energia que repousa – e muitas vezes explode – numa sala de cinema. Acredito que o exercício da curadoria ganha especial importância nesse contexto. Como escreveu o crítico Heitor Augusto em texto publicado no site do Centro Cultural São Paulo, “a curadoria representa um reagente insubstituível para a constituição desse planeta”. Tem a capacidade de fornecer insumo para a elaboração de questões urgentes de nossa sociedade e de apontar, com a força propositiva da arte e da cultura, trajetos e futuros alternativos ao abismo que nos encontramos na atualidade.

Se é possível falar em ganho da pandemia – com toda a contradição que essa expressão carrega -, foi ter a oportunidade de acompanhar, muitas vezes, pela primeira vez, diversas mostras, cineclubes e festivais com programas e filmes dos mais diferentes entre si. Digo isso para introduzir uma proposta cujo título ainda ressoa por aqui. Em setembro, Greg de Cuir Jr. programou, dentro de um espaço expositivo virtual do Media City Film Festival, festival canadense de filme e videoarte, uma “experiência multidisciplinar” denominada Radical Acts of Care – Atos Radicais de Cuidado, em tradução livre. Por mais instigante que tenha sido a
curadoria – dentre as peças em exibição, por exemplo, estava o Covid Manifesto de Cauleen Smith -, foi uma das possibilidades sugeridas por ela que me atraiu: o entendimento de um cuidado que seja radical para com um momento generalizado de sofrimento. E não me refiro apenas à pandemia. O ano de 2020, afinal, foi também o ano do assassinato de George Floyd e de João Alberto Freitas. De Emily, Rebecca, João Pedro e Miguel. Considerando tanta dor, o que pode a curadoria – e o cinema – contra as violências do mundo? “Você achou que um filme poderia nos salvar?” é uma das primeiras perguntas feitas ao protagonista de Residue, longa de Merawi Gerima exibido no Encontro Zózimo Bulbul. Possivelmente, nada, me respondo. Mas, simultaneamente, tudo.

Gosto do modo como a artista Grada Kilomba compreende o sentido de “ferida” no texto A máscara, presente em seu livro Memórias da Plantação. A “ferida como trauma”, ela explica numa nota de rodapé. Pois, “aparentemente, a irracionalidade do racismo é o trauma”, exemplificada no absurdo perpetrado continuamente por um mundo branco que faz-nos ver sempre enquanto o outro, o diferente, o não-humano. A reparação, portanto, ela conclui, viria pela negociação do reconhecimento: “um ato de reparação do mal causado pelo racismo através da mudança de estruturas, agendas, espaços, posições, dinâmicas, relações subjetivas, vocabulário, ou seja, através do abandono de privilégios”².

Ferida enquanto trauma, curadoria como possibilidade de cura? Por mais que a etimologia da palavra aponte para esse sentido, calma lá. Por muito tempo – e ainda hoje – a curadoria foi utilizada para reforçar diversas das violências presentes na contemporaneidade, compartilhando visões limitadas e estereotipadas de realidades negras, indígenas e queer, para citar apenas alguns exemplos. Por isso muitas pessoas, e aqui me incluo, preferem utilizar o termo programação. Mas julgo existir, no ato de selecionar e organizar filmes, um importante gesto de negociação de realidades. Se o filme cochicha, como disse Gabriel Coêlho num laboratório de crítica, que estejamos dispostos e atentos a conversar a partir das realidades que as obras propõem e daquelas que deixa de propor.

Ao longo do ano, tive a oportunidade de participar de três processos curatoriais. Integrar a equipe da LONA – Mostra Cinemas e Territórios, da Mostra Fale de Cinema Independente e do Cinecipó, o Festival do Filme Insurgente, foi ter a chance de conhecer e reconhecer o Brasil e seus diversos construtores, viajando sem precisar sair de casa. Cada filme, uma ideia a ser considerada. Cada proposição, um tópico para um diálogo que encontrou, no esforço de um diverso coletivo, espaço para reverberar ideias, considerações e discussões. Quem dera se todos os processos de programação carregassem a mesma vontade pelo debate.

Pois, de tudo, seja em tempos pandêmicos, seja em tempos “normais”, o que a curadoria pode fazer é uma oferta – e aqui parafraseio a crítica e curadora Janaína Oliveira, que, por sua vez, numa palestra, parafraseou a fala da cineasta Cauleen Smith. Oferecer uma curadoria é, portanto, compartilhar suposições sobre o mundo que habitamos, tendo a consciência de que tanto reconhecimentos quanto atritos podem advir no momento em que essa proposta encontra o outro. Atrevo-me um pouco mais: ofertar uma curadoria é, talvez, contribuir para a construção de mundos que elaborem perspectivas de vida frente à necropolítica que insiste em nosso massacre. “Oposição não é o bastante”, bell hooks já deu a letra. “No espaço deixado por aquele que resiste ainda há a necessidade do devir – da renovação de si mesmo”³.

Na impossibilidade do encontro físico, que continuemos elaborando formas de renovação a distância, encontrando pequenas chamas de calor na caixa de comentários do YouTube ou nas videochamadas entre amigos. E que levemos um pouco dessa experiência, entendendo e jogando com as potencialidades e as limitações da internet, para quando o abraço retornar. Já chegamos até aqui. Falta pouco.

. Gabriel Araújo é jornalista e atua com crítica e programação de cinema. É cofundador do Enquadro, projeto voltado para a difusão do cinema negro brasileiro, e do Cineclube Mocambo. Integra o Fale de Cinema e o Coletivo Zanza.

¹ A mostra foi uma realização minha e de Amanda Lira no âmbito do Enquadro, agência de jornalismo independente voltada para a difusão do cinema negro brasileiro.
² KILOMBA, Grada. A máscara. In: KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. p. 37, 40, e 46.
³ hooks, bell. A política da subjetividade negra radical. In: hooks, bell. Anseios: raça, gênero e políticas culturais. São Paulo: Elefante, 2019. p. 55.

. ilustrações por esther az.

. esta publicação é parte da chamada pública de textos realizada pela vai ter, parte do projeto BH 121, nº0951, aprovado no Edital 2017 oriundo da Política de Fomento à Cultura Municipal (Lei nº 11.010/2016).

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