por Samora N’zinga*

Capítulo 1

Em 2012, eu trabalhava no Centro Cultural Casa África. Era assistente do cônsul Ibrahima Gaye e, durante a noite, trabalhava como garçom no restaurante e bar localizado aos fundos da casa. Durante o expediente, enquanto entregava os pedidos, sempre conferia o relógio imaginando como estariam as batalhas no Duelo de MC’s, evento com hora e local marcado, todas às sextas-feiras debaixo do Viaduto Santa Tereza.

Eu gostava bastante do trabalho na Casa África. Meus colegas eram ótimos, a comida era maravilhosa, e até o perfume do ambiente era encantador; não era um trabalho ruim, mas a ansiedade me consumia todas as sextas-feiras. No momento em que o relógio marcava 20:00 o restaurante estava no máximo de sua lotação e eu sabia que era nessa hora que se iniciavam as inscrições para o que seria a maior competição de rap Freestyle do país. Meu desejo era ser liberado para ao menos conseguir assistir às finais. Com sorte conseguia sair às 23:00. Tinha um ônibus que passava às 23:05 e, se ele não me janelasse e pegasse muitos sinais verdes, daria tempo de pegar o último round da final ou o Freestyle do Campeão. Na maioria das vezes eu chegava atrasado e acompanhava de longe apenas a desmontagem do palco, quando o Monge, o Leo e o PDR já haviam encerrado o evento. Eu procurava algum conhecido pra perguntar como tinham sido as batalhas daquela noite e mandava algumas rimas nas rodinhas que se formavam após o término do evento. Essa rotina durou alguns meses.

O Viaduto era um lugar mágico, e ao mesmo tempo possuía uma energia sinistra. Era um espaço de convivência entre os diferentes. Belo Horizonte, embora não pareça à primeira vista, é uma cidade muito segregada do ponto de vista sociocultural. Tão segregada que nem os seres da noite se misturavam: boêmios, trabalhadores, vândalos, agentes da segurança, anarquistas e clandestinos. Cada praça da cidade era território de um grupo diferente: a praça Raul Soares era ocupada por grupos LGBTQI+; a Praça da Liberdade, pelos emos, punks, otakus e metaleiros; a Praça 7, pelos malucos de estrada, skatistas e trabalhadores centrais em fim de expediente; a Praça da Estação, por moradores de rua, crentes e artistas circenses. O único lugar na cidade que conseguia reunir todo mundo era o Viaduto Santa Tereza, onde havia o palco do Duelo de MC’s, o saudoso bar Nelson Bordello e o tradicional Samba da Meia Noite. Embora fosse o território da galera do rap, as rimas dos mestres do viaduto encantavam a todos, faziam fãs e curiosos se aglomerarem em volta do palco. Os gritos de empolgação dos universitários da PUC se misturavam com os gritos dos punks, ambulantes e pedintes. Era um local da diversidade.

A primeira vez que subi no Viaduto pra rimar foi por medo. O ano era 2013, e o Monge, no posto de porta-voz da Família de Rua (coletivo organizador do Duelo de MC’s), anunciou o fim definitivo do Duelo de MC’s. O motivo? Embates com o poder público da época, que responsabilizava o coletivo organizador pela falta segurança do espaço. Bom… Meu medo era do Duelo realmente acabar e eu nunca ter a oportunidade de subir naquele palco, mesmo tendo treinado tanto tempo pra um dia participar. Definitivamente não me sentia preparado – pelo contrário –, mas botei meu nome mesmo assim. O nervosismo aumentava meus batimentos me deixando imóvel. Em poucos instantes eu iria enfrentar meus ídolos em uma disputa sangrenta até a morte. Tentei respirar, tentei beber água e nada funcionava. Eu já havia feito grandes apresentações como baterista, mas um microfone era diferente. O palco era um problema pra mim. Nunca fui do tipo de pessoa que gosta de ser o centro das atenções, mas ao mesmo tempo o desafio me motivava. Meu nome foi o primeiro a ser chamado: Samora vs. Vinicin.

A tremedeira virou uma sensação gelada que percorria a espinha; talvez tenha tido um ataque de ansiedade, mas quem se importa? Daquele ponto em diante não era possível voltar atrás. Peguei o microfone. Era a segunda vez na vida que segurava um microfone, não estava nem acostumado com o peso. Venci o par ou ímpar e pela falta de estratégia escolhi começar. Foi a primeira vez que vi o público da perspectiva de um MC, e quando o beat começou e eu misteriosamente relaxei, a plateia nos ovacionou com os tradicionais gritos de wow e rimei no Viaduto pela primeira vez na vida.

Não, não lembro o que eu disse; eu nunca consigo me lembrar das coisas que eu rimo. É realmente improviso, preciso assistir a algum vídeo pra me recordar, mas rimei, lembro de ter falado algo sobre kamikaze e só. Vinicin respondeu com uma sequência de ataques que hoje considero normais, algo sobre eu ter rosto de 30 anos mesmo sendo “de menor”, surra de bambu, calçar sapatos de palhaço e ser um teco-teco em resposta ao meu ataque sobre aviões; mas na época o peso pra mim era bem maior, eu estava aprendendo a improvisar e as batalhas são literalmente um passo além dessa técnica. No momento da resposta foi quando finalmente esqueci as circunstâncias e consegui me concentrar na rima. Entrei errado no beat devido a contagem errada do Monge, mas, enfim, momentos. Consertei rapidamente e minha primeira resposta foi algo como “me chamou de teco-teco, cê tá ligado que sou teco-teco de guerra tipo batalha de Stalingrado”. E um grito estrondoso da plateia me fez sair do mundo da rima e voltar pra realidade. Pensei: acertei uma!

E o que mais ele falou? Eu não lembrava! Nessa hora deu um branco enorme, não conseguia lembrar de mais nada e enquanto pensava ia enchendo linguiça. Se eu não respondesse, o jogo acabaria ali. As rimas foram passando, embora o tempo tenha ficado ligeiramente devagar, e depois do que pareceu uma eternidade lembrei de mais um ataque do meu oponente e retruquei: “você falou do bambu, Silvio Santos sabe onde ele tá, ele enfiou no seu…”. Pois é… Vocês entenderam, meu desempenho tinha caído drasticamente da primeira rima até ali, mas essa foi uma surpresa e arrancou gargalhadas da plateia, o que é uma coisa muito boa!

O round acabou, meu desempenho não foi tão bom, mas conquistei a simpatia de alguns que pediram terceiro round e, por voto dos jurados, o Vinicin passou de fase. Saudei a todos e desci do palco, e nessa mesma hora todos os meus amigos vieram me cumprimentar dizendo que gostaram da batalha, me desejando parabéns. Eu só conseguia pensar que se eu não estivesse tão nervoso dava pra ganhar, ou ao menos rimar de igual pra igual… Era desafiador, mas não impossível; eu conseguia e queria revanche. Naquela época, eu precisava a todo custo vencer meu medo de palco. A adrenalina e a sensação inesquecível do grito do público fizeram meu sangue ferver e despertaram em mim um forte desejo de querer enfrentar novos oponentes, rimar mais e rimar melhor; e foi assim que me viciei nas batalhas de rap.

Capítulo 2

Depois desse dia não sei ao todo quantas batalhas eu travei, mas devem ter sido umas mil. Me inscrevia em todas que podia, fossem grandes ou pequenas: Batalha da Estação, Rapa do Papa, Batalha da Casa Amarela, entre várias outras. No início, cheguei a disputar algumas finais, mas só fui ser campeão pela primeira vez na Batalha do Santa Cruz em São Paulo, no ano de 2014. Naquela ocasião, a roda cultural do Santa Cruz completava 10 anos de existência. Não sei como funcionava a dinâmica da capital paulista, mas as famosas Rinha dos MC’s e a Batalha do Santa Cruz eram alvo de muitas histórias, mitos e lendas no rap nacional. Aquele foi um dos palcos que revelou nomes de grandes artistas como Emicida, Rashid e Kamau. Foi o palco da geração de freestyleiros, que inspirou a geração que me inspirou. Quando voltei pra BH e contei meu feito, a galera falou surpresa: “Tu foi campeão na batalha que o Emicida rimou”. Ninguém daqui nunca tinha feito isso. Naquela época, embora BH colecionasse alguns prêmios, inclusive na extinta Liga dos MC’s (até então a maior batalha do Brasil), nosso rap enquanto música não era tão reconhecido, como acontecia com o eixo Rio-São Paulo.

Venci batalhas em São Paulo, Rio de Janeiro, Natal e Vitória e, mesmo assim, o Duelo continuava sendo um desafio. A energia do viaduto sempre foi muito cabulosa. Só fui conseguir o troféu tão sonhado em 2017, numa edição dentro do festival Hip Hop.doc. Na ocasião enfrentei os MC’s Crizin, Lancaster e Big Leo.  Não lembro minhas rimas, há apenas registro fotográfico desse dia, mas lembro como se fosse hoje dos gritos da plateia. Os gritos de wow sempre me acompanham alguns dias depois do fim da competição. Ao chegar em casa fico pensando nas respostas que poderia ter dado – rimo sozinho contra oponentes imaginários. A sensação da adrenalina custa a deixar o corpo, e o coração demora pra desacelerar.

Oito anos não são oito dias. De 2012 pra cá muita coisa aconteceu: além de finalmente ter conquistado o título de campeão do Duelo de MC’s, entrei num grupo de rap, saí de um grupo de rap, lancei disco solo, viajei o Brasil atrás de novos títulos, fui pra África em uma turnê, voltei, lancei outro disco e fiz o show de abertura do Duelo de MC’s Nacional em 2019, o evento que definitivamente se tornou o maior do Hip Hop no Brasil! Estava indo tudo muito bem até a chegada desse vírus e do desgoverno que infelizmente acompanhou essa tragédia.

Capítulo 3

Sem palcos, sem rua, sem rap. Essa foi uma das milhares de consequências negativas causadas pela pandemia. Desde a vitória do MC Simpson Souza na Liga dos MC’s em 2007, Belo Horizonte nunca havia ficado tanto tempo sem batalhas de Freestyle. Pra tentar contornar isso, grupos começaram a organizar batalhas virtuais. Eu, curtindo minha aposentadoria do Freestyle e dedicando meu tempo integralmente para a música, recebi um convite irrecusável. O mestre dos mestres da rima improvisada, também conhecido como seu camarada Emicida, na onda da adaptação a essa nova realidade, decidiu voltar às suas raízes do underground e organizar um duelo virtual com representantes do Brasil inteiro. Sinceramente, não achei que fosse ser chamado. Embora tenha trilhado um longo caminho ao longo desse processo, não dei a devida atenção às câmeras e às redes sociais como outros MC’s de Freestyle da minha época – meu foco sempre foi a cultura de rua, mas dessa vez era impossível voltar às ruas da mesma forma de antes. E quando o convite chegou eu falei: vão bora!

Entre meus concorrentes estavam o então campeão do Duelo de MC’s Nacional, campeões e vice-campeões da Bahia, São Paulo, Ceará e Rio de Janeiro. Vários jogadores de peso. Que saudade daquela sensação de desafio! Me senti como se fosse a primeira vez em uma disputa dessas, o que por um lado era verdade, já que a batalha era virtual. Não haveria público, nem gritos, nem o olhar sanguinário do oponente: seria apenas eu, o beat e o microfone.

Meu amigo Inti costumava dizer que as batalhas de rap são como o jogo batalha naval: usamos o conhecimento alocado nos mares da nossa mente para atacar o adversário, sem muitas vezes conhecê-lo ou saber os temas que ele ou ela dominam ou desconhecem. Para saber que tipo de ofensiva funciona, precisamos ir testando nos primeiros rounds abordagens e temáticas que façam sentido principalmente para a plateia, e em segundo lugar que abalem o psicologicamente o oponente e, de forma sempre respeitosa, o deixe sem resposta. No improviso, usamos tudo que estiver ao nosso alcance para criar os versos: a plateia, os gestos do oponente, as roupas, o clima, aquilo que é dito, a paisagem, o cenário e o contexto da época ou espírito do tempo. Mesmo que usemos o cenário de nossas casas como referência, o público e os jurados estão em outro ambiente, condicionando nossas estratégias e criação poética ao ambiente virtual ou à pura e simples imaginação e ao contexto. Não acho que seja mais fácil ou difícil, mas é diferente e de certa forma nos tira da zona de conforto das batalhas tradicionais. Sem os gritos da plateia, os vícios de linguagem ficam mais evidentes, e perdemos o termômetro das reações da multidão. Nossa única referência se torna nossa experiência e o instinto lapidado a cada punchline bem cravada na batida.

Na primeira rodada enfrentei o Japa. Estava chovendo muito na região onde ele mora, o que deixou sua conexão com a internet prejudicada, mas isso não era motivo pra pegar leve, justamente o contrário. Às vezes a plateia se simpatiza com um dos competidores que esteja em certa desvantagem, mesmo que essa desvantagem não mude seu desempenho final. Venci o cara ou coroa. A julgar pela reação do Emicida, que estava ali como apresentador e jurado, era nítido seu desejo por sangue, e provavelmente parte da audiência se deixaria levar por suas reações. Portanto, minha estratégia foi basicamente atender às expectativas do apresentador e através dele cativar a plateia. Queriam sangue e tiveram sangue. O Japa optou por transformar sua desvantagem em vantagem, e fez uma construção poética muito boa, que deixou claro sua garra, indicando para todos que nem São Pedro das chuvas iria impedi-lo de mandar suas rimas. Nas batalhas, cada ataque é uma abertura pra uma possível resposta, portanto o melhor que se pode fazer é oito ou oitenta, atacar muito ou não atacar nada. O meio termo é perigoso porque você deixa brechas e não causa dano suficiente. Dessa vez, como o oponente desferiu poucas ofensivas, preferi o oitenta e disparei uma sequência desenfreada de punchlines, o que é mais difícil, mas quando funciona é a melhor escolha possível.

Na etapa seguinte, enfrentei o Jotapê. Acredito que tenha sido das batalhas mais disputadas que já participei. Nenhum dos dois queria ceder. Os temas foram de corrupção brasileira a Mamonas Assassinas, passando por linhas aéreas do inferno e savana africana. A plateia e os jurados foram à loucura! O terceiro round foi acirradíssimo e houve empate na votação. Os comentários do Twitch não paravam e meu coração saltava pela boca, até que o voto de minerva do Emicida decidiu a disputa e passei para as finais.

A partir daí meu objetivo de conquistar o reconhecimento público do MC de Freestyle com a maior trajetória no rap nacional já estava cumprido. Não tenho palavras pra descrever a felicidade que senti. Na final, enfrentei o Magneto do Rio de Janeiro e a Winnit de São Paulo, dois confrontos inesquecíveis. Passamos por temas que viajaram do neofascismo e O Mágico de Oz a mutação genética e DragonBall Z, tudo marcado por um flow inquebrável de ambos os lados. No final da primeira edição do #VaiSerRimando, fui premiado com o título de “Dono do Mic” da temporada e tive o prazer de estar lado a lado com os melhores. Tudo começou como um jogo, e ainda é assim. Freestyle é lazer e diversão, uma tecnologia social criada pelo hip hop para resolver conflitos com poesia. Espero que com a chegada da vacina possamos nos encontrar novamente pelos palcos da vida.

Samora N’zinga é pesquisador, poeta, MC e Produtor Cultural. Um dos nomes de maior reconhecimento do Duelo de MC’s, é idealizador do projeto Ponte Brasil Moçambique e autor do disco D.A.A.T..

. ilustrações por esther az.

. esta publicação é parte da chamada pública de textos realizada pela vai ter, parte do projeto BH 121, nº0951, aprovado no Edital 2017 oriundo da Política de Fomento à Cultura Municipal (Lei nº 11.010/2016).

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