Por Juliana Afonso*

Annie conseguiu um emprego no final de junho. Era o auge da pandemia do coronavírus em BH. No começo, ela ficou apavorada, principalmente por voltar a pegar ônibus todos os dias. Máscara no rosto, potinho de álcool em gel na mão, cartão de ônibus no bolso. Foi preciso repetir esses procedimentos uma dezena de vezes até ficar tranquila. Agora ela não sente mais medo. “Eu sinto raiva. Apenas”.

A linha que Annie pega é a 2101, Grajaú-Sion. Por causa da pandemia, o quadro de horários foi reduzido, principalmente fora do pico. Quando ela sai do trabalho, às duas da tarde, é preciso chegar rápido ao ponto de ônibus. Alguns minutos a mais são o suficiente para perder o busão. “Antes da pandemia tinha mais ônibus e tinha também mais uma linha, Grajaú-Sion via Savassi. Essa linha foi cortada”. 

Para completar, ela precisa conviver diariamente com os hábitos nada sanitários de alguns passageiros. “Tem duas meninas que ficam conversando sem máscara e botam a máscara pra sair do ônibus. Como assim? Eu to num patamar de incômodo com elas que se eu vejo que o busão vai encher, e vai rolar uma proximidade, eu pego o próximo”.

Cortes de linhas, redução do quadro de horários, veículos lotados, falta de álcool em gel, passageiros inconvenientes. A lista de problemas que os usuários do sistema de transporte coletivo de Belo Horizonte enfrentam não é nada convidativa.

Para quem depende dele para trabalhar há pouca margem de manobra, mas quando falamos em atividades culturais e de lazer, muitas pessoas buscam alternativas ao ônibus ou acabam ficando em casa. As consequências do atual cenário da mobilidade urbana para o setor cultural ainda são pouco debatidas, mas substanciais.

Os acessos

A cultura não é propriedade de um espaço. Ela está viva nas pessoas e nos locais por onde elas passam. Nas ruas, mas também nas casas; nas arquibancadas, mas também nos quintais. Ainda assim, os equipamentos públicos e os espaços para eventos são fundamentais na organização das práticas culturais – e a maior parte deles está no centro da cidade, onde também circula a maior oferta de transporte.

Por esse motivo, o caminho “natural” é que grande parte das apresentações e espetáculos aconteçam no centro. Essa escolha, porém, afasta as pessoas que moram nas periferias, onde o transporte é escasso e ainda mais caro.

A descentralização das atividades culturais é um debate antigo, que conta com o esforço de diversos grupos e artistas. Um deles é o Coletivo Pegada, que realiza o Festival Transborda há 10 anos. A produtora Camila Cortielha conta que, em 2017, o transporte teve grande peso na escolha do local. “Decidimos montar o festival no Museu de Arte da Pampulha porque era perto do MOVE”, conta. Na época, a grande atração do evento era o rapper Djonga. “Brotou gente de todo lugar, de várias quebradas, que conseguiu acessar o festival porque foi de MOVE. Afinal, longe pra quem?”.

Com a pandemia, o debate sobre o papel do transporte na descentralização das atividades culturais parece suspenso. Nada mais natural para um setor que teve praticamente todas as suas atividades interrompidas ou transferidas para o formato digital, sem previsão de retorno e sem garantia de renda.

O artista Di Souza conta que todo o seu trabalho foi afetado. “Minhas atividades são ‘aglomerativas’ e eu tive que me readequar e buscar maneiras de continuar vivendo”. Os shows foram cancelados ou feitos por live, o carnaval se restringiu a reuniões e a escola Percussão Circular, criada por ele, passou a funcionar online. É das aulas que o artista tem conseguido tirar o seu sustento.

A arte-educadora Bruna Ferreira, conhecida como Pimenta, passa por situação semelhante: seus shows foram cancelados e a única atividade que continuou foram as aulas. Pimenta leciona graffiti e história da cultura hip hop na Escola Municipal Anne Frank, no Confisco. “Eu tive que criar uma metodologia online, mesmo sabendo que a maioria dos meus alunos não têm acesso à internet”, comenta.

Neste ano, um dos únicos eventos que conseguiu acontecer fora das telas foi o CURA – Circuito de Arte Urbana. “A decisão de fazer ou não passou por sacar que o festival era um dos poucos que poderia acontecer fora do mundo virtual”, conta uma das suas criadoras, Janaína Macruz. O festival coloriu a cidade com a pintura de quatro fachadas e a instalação da obra “Entidades”, na qual duas cobras gigantes entrelaçavam os arcos do Viaduto Santa Tereza. A repercussão foi mundial, mas Jana guarda com carinho o áudio que recebeu de um colega. “Ele contou que um amigo foi visitar a tia de 84 anos e a tia falava: ‘Menino, você viu esse festival, Cura Art? Aquelas cobras no viaduto, que coisa mais linda! O pessoal desce do ônibus só pra ver a cobra rapidinho antes de ir pra casa’.”

Os perrengues

Assim que Belo Horizonte registrou o primeiro caso de covid-19, foi decretada a suspensão das aulas e a paralisação dos serviços não essenciais. Isso aconteceu em 17 de março. No dia seguinte, a frota de ônibus circulando pela cidade já era consideravelmente menor. Segundo a Empresa de Transporte e Trânsito de Belo Horizonte, a BHTrans, os cortes de linhas e quadros de horários foram feitos para ajustar o serviço à demanda, já que o transporte coletivo teve uma redução de mais de 60% no número de usuários.

As mudanças não foram suficientes para cumprir as recomendações de distanciamento social previstas pelos órgãos de saúde. De acordo com a pesquisa “Perrengues do Busão na Pandemia”, feita pelo movimento Tarifa Zero BH, 93% dos passageiros participantes afirmaram pegar ônibus lotados. “A BHTrans não irá comentar a pesquisa do Tarifa Zero”, foi o retorno dado pela assessoria do órgão quando questionada.

Antes dos cortes, eram realizadas 24 mil viagens de ônibus por dia. Atualmente, esse número é de 16.500. “A qualidade do serviço que está sendo ofertada, em termos de ocupação dos veículos, é similar à que era ofertada antes da pandemia”, afirma o professor do Departamento de Engenharia de Transporte do Cefet-MG, Renato Ribeiro. Mas adverte: “mesmo que esteja igual ou melhor, não é o suficiente para a situação que a gente vive”.

Com a retomada das atividades em BH, no dia 6 de agosto, os relatos de ônibus cheios, atrasos e falta de álcool em gel nos veículos continuaram. A situação é ainda mais tensa nos fins de semana. Annie conta que tentou pegar um ônibus em um domingo, sem sucesso. “O busão tava demorando mais de hora pra passar. Tive que pedir um carro”.

Pode parecer lógico que nos finais de semana os ônibus passem menos. Essa situação, porém, é fruto de uma lógica em que o deslocamento serve apenas ao trabalho, jogando para escanteio outros tipos de atividades. Com o retorno dos eventos culturais, a ida a teatros, cinemas e outros espaços também fica comprometida.

Os cenários

Já são mais de 200 dias de isolamento social e a vontade de voltar a frequentar bares e festas sem medo de ser feliz é quase uma unanimidade. Porém, se levarmos em conta a prática dos empresários de ônibus de reduzir as viagens para não perderem sua fatia de lucro, o acesso à cidade pode ficar ainda mais restrito – e o setor cultural precisará se adaptar a novos cenários.

Um deles é o uso das plataformas digitais. Para muitos, os encontros virtuais são uma alternativa mais atrativa que as horas de espera no ponto de ônibus ou os riscos sanitários de um veículo lotado. É importante lembrar que mais de 6 milhões de pessoas não têm acesso à internet em Minas Gerais, segundo dados do IBGE. Ainda assim, a pandemia fez da tela do celular um portal infinito de informação e cultura para outras milhões de pessoas.

A diretora de Museus da Fundação Municipal de Cultura, Sara Moreno Rocha, discute os desafios e as oportunidades desse cenário para o setor das artes visuais. “A experiência da visita e do contato presencial com a obra é insubstituível. Ao mesmo tempo, a difusão dos acervos e as atividades educativas pela internet podem dar acesso a um público mais amplo e ampliar a missão dos museus”.

O artista Di Souza acredita que o online não será abandonado, mas faz ressalvas sobre a qualidade da interação com o produto cultural através da tela. “As pessoas têm procurado até mais aulas e cursos, mas estão consumindo tudo e nada ao mesmo tempo. Eu acho que o ato de você sair de casa e ir até o local do evento cria uma atmosfera de preparação que causa uma diferença no estado de espírito, na presença da pessoa naquele lugar”.

Outro cenário possível é a valorização das atividades locais. Com o agravamento das dificuldades de se deslocar na cidade, os eventos culturais nos bairros e regiões podem se tornar mais atrativos. “Há uma discussão muito séria sobre o ônibus ser ou não um vetor de contaminação. De toda forma, o novo normal com todo mundo andando de carro não cabe na nossa cidade. Reforçar a cultura da circulação de carros é reforçar todos os erros que a gente cometeu no passado. Precisamos de um novo normal que seja sustentável. Para isso, vamos ter que descentralizar nossas atividades em definitivo”, afirma o professor Renato.

Um expoente dessa proposta é o conceito de “cidade em 15 minutos”. A ideia é que o espaço urbano esteja organizado de tal maneira que seus moradores possam ter acesso a tudo que precisam em até 15 minutos de caminhada. Essa é a aposta da prefeitura de Paris: para eles, a diminuição da necessidade de deslocamentos é uma forma de preparar a cidade para passar por novas ondas de contágio do coronavírus – ou mesmo futuras pandemias.

Em Belo Horizonte, as políticas públicas estão na contramão dessas tendências. Os deslocamentos de curta ou média distância, como os que são feitos por bicicleta, não são incentivados. Um exemplo bastante simbólico é o fato de terem sido implantadas algumas ciclofaixas temporárias na cidade, ao invés de ciclovias permanentes. Além de insuficientes, alguns trechos são estreitos, inseguros ou carecem de sinalização.

Compreender como as pessoas têm se deslocado – ou não – nesse momento de pandemia é fundamental para pensar o retorno das atividades culturais. E elas, por sua vez, podem reforçar novas formas de deslocamento na cidade, em contraponto à lógica que centraliza o transporte e dificulta a democratização da cultura. As pessoas querem se ver e viver a cidade. “Todas as modalidades virtuais e as mil ideias que surgiram, nada supre a nossa necessidade de conviver”, diz Janaína. “Eu acho que tá todo mundo doido pra acabar essa pandemia e ficar pulando, suando junto, na rua, ouvindo música e tudo mais”. Estamos.

Juliana Afonso é jornalista e mestre em Escrita Criativa. Atua como freelancer nas áreas de Turismo, Cultura e Política. Integra o núcleo de comunicação da Gabinetona e o movimento Tarifa Zero BH.

. ilustrações por esther az.

. esta publicação é parte da chamada pública de textos realizada pela vai ter, parte do projeto BH 121, nº0951, aprovado no Edital 2017 oriundo da Política de Fomento à Cultura Municipal (Lei nº 11.010/2016).

leia também:

#9 Curadorias radicais para a elaboração de outros mundos
#8 Crônicas de um MC de Batalha
#7 O Samba agoniza, mas não morre
#6 corpo-poema que quase
#5 Para se ver e viver a cidade
#4 Funk é afrofuturismo
#3 Da rua para as telas e outros (re)começos
#2 Toda festa é uma aposta
#1 Como fazer uma newsletter de eventos no meio de uma pandemia?