Por Lara Spagnol *

Forasteira, aprendi a reconhecer Belo Horizonte pelo olfato: é daqui o cheiro sazonal da flor de manga que, nos dias quentes, se mistura aos já característicos aromas do coquinho caramelizado pelo pipoqueiro, da fumaça dos ônibus, dos cigarros dos meus amigos.

Em um desses finais de tarde eu desceria na subida da Bahia com Augusto de Lima e sentiria na cara esse bafo quente, doce e enfumaçado, uma familiaridade conquistada na pirraça. Desviaria das motos estacionadas na beirada da esquina, procuraria uma cadeira amarela e me sentaria a menos de 30 centímetros das pessoas ao meu lado. Falaríamos alto, discutiríamos bobagens pelo simples prazer da prática, protestaríamos frente à responsabilidade daquele que fosse embora primeiro. Eu renderia para além do razoável e, quando piscasse o olho, pode ser que nós, os desajuizados, já estivéssemos em outro lugar, ainda mais apertado, quase nada ventilado, nos jogando cada vez mais na direção um do outro, limpando o suor da testa entre uma música e outra, compartilhando o copo de alguma bebida menos gelada que o desejável, dividindo também nossas partes invisíveis, ao mesmo tempo tão próximos e tão esquecidos de nós mesmos.

Sei que existem outros modos de ser, mas eu só posso dizer da vida nesse horizonte abrutalhado que, ao mesmo tempo em que nos vigia, também nos confina e nos empurra cada vez mais ao encontro do outro. Sei também que existem outras explicações para o fato de fazermos as coisas como fazemos aqui, mas eu gosto de atribuir uma parcela de culpa ao relevo para o fato de termos uma sociabilidade tão particular: a rua nos atravessa; comungamos essa cidade toda sexta-feira.

No último final de tarde, me olhei no espelho e fingi ignorar o descompasso entre a boca vermelha, a roupa pensada e o chinelo de dedo nos pés. Deixei em cima da mesa os limões e o balde de gelo, enchi meu copo com gim e água tônica e cliquei num link que havia recebido por e-mail, algumas horas antes. Antes de entrar na sala, conferi a minha imagem numa tela de teste de vídeo, como se checasse rapidamente, no retrovisor do último carro antes da mesa em que vou me sentar, se meu cabelo ganhou vida própria durante o trajeto com as janelas abertas. Já na sala, aprendi novas e explícitas regras de etiqueta — em contraste com a única regra que conhecia antes, a que manda tratar bem o garçom —: desligar o microfone, conversar pelo chat.

A moldura da tela compreende tensões familiares e alguns estranhamentos. Nos pequenos quadrados, reconheço os rostos de alguns amigos daqui e de outras cidades, colegas, e até a peculiar categoria de relacionamentos de festas: o amigo fugaz, aquele com quem você conversa na fila do banheiro, compartilha coreografias na pista e — em alguns casos — até um cachorro-quente na volta pra casa, mas cujo nome você desconhece. Alguns quadrados estão apagados, exibindo somente o nome do usuário. Imediatamente me lembro dos cantos mais escuros da pista, os quais já evitei, mas nos quais já me vi tantas vezes, impulsionada por algum dos tantos excessos que constroem uma festa. Os DJs aparecem às vezes na tela principal, iluminados por luzes coloridas dançantes e estáticas, e se dividem entre cantar a música que tocam naquele momento e tentar ler, na reação dos participantes da festa, se fizeram a escolha certa.

A tela principal se reveza entre os participantes da festa: um casal conversando na cozinha de casa, duas amigas dançando e fazendo a garrafa de bebida de microfone, uma garota que, assim que se percebe em destaque, exibe seu gato para a câmera, um rapaz de óculos escuros fazendo uma dublagem provavelmente perfeita da música que estava tocando, mas que chega para mim em desacordo com o som. A diversão se insinua na performance que cada um pode oferecer, a depender de seu engajamento enquanto produtor ou espectador da situação. Em uma festa que se sustenta pela imagem que cada participante disponibiliza de si mesmo, parece ser difícil reconhecer os limites entre o genuíno e o encenado. No entanto, não seria esse um limite no qual sempre esbarramos, em nossa insistência ingênua na busca pelo verdadeiro em detrimento do produzido? Não teria toda interação traços maiores e menores de uma performance realizada para os olhos do outro?

Saio para preparar meu terceiro copo de gim-tônica (sem saber se deveria me arriscar assim, após uma considerável temporada de abstinência) e, quando volto para a frente do computador, a tela principal está fixada em uma imagem diferente: um participante apoiou o celular no painel do carro e saiu pela cidade, exibindo suas ruas vazias, se desenhando pouco a pouco pela luz do farol. A música que toca agora é composta por sobreposições de faixas de sintetizadores, que se repetem e se acumulam em um ritmo notadamente mais lento que o das músicas anteriores. Para outras gerações, a nostalgia certamente soa de forma diferente, mas quem cresceu junto com a acessibilidade da tecnologia aprendeu a reconhecer saudade nos excessos digitais das músicas do final dos anos 80 e na sonoplastia dos videogames. O som do passado, junto às projeções dos espaços icônicos da cidade, me conduz a uma conclusão não muito reconfortante: aquelas também eram ruas de uma outra época.

Se toda imagem anuncia sua própria ausência, o conjunto de imagens da cidade que entrava pela tela do computador se materializava como o acúmulo de faltas experimentadas desde o início do atual modo de vista imposto. Aquela festa, ainda que com todas as suas limitações, contra-atacava como uma possibilidade de tradução entre nós e aquilo que nos falta: nossa sociabilidade, entremeada pelas ruas e espaços de nossa cidade.

Por alguma tendência à mágoa, somos atentos aos aspectos que se perdem nas traduções. A distância entre os corpos, a ausência da espontaneidade, a impossibilidade de dividir um espaço em comum, o silêncio das vozes, a cidade apartada… todos esses ruídos são perceptíveis na passagem de uma festa, como a conhecemos, para o ambiente virtual. Além disso, a mediação à qual as festas virtuais precisam recorrer aparece como um entrave, porque nos torna muito conscientes de nós mesmos. Encontrar constantemente o próprio rosto entre os vários que compõem o mosaico de quadrados das plataformas virtuais tem o efeito oposto ao esquecimento de si mesmo e da própria vaidade, presente nos grandes momentos das festas.

O exercício dos mais atentos, no entanto, pede atenção àquilo que resiste às traduções. Há quem diria: um traço da língua pura, à qual todas as outras línguas remetem. O que resiste, aqui, é o próprio impulso de se festejar. Apesar da distância; apesar de a sala de casa dificilmente oferecer a melhor acústica ou a melhor iluminação; apesar do excesso em casa não parecer tão tentador quanto parece na mesa de bar; apesar da solidão; apesar da necessidade de reorientar os próprios desejos; apesar da desesperança; apesar do desamparo; apesar do medo; apesar do cansaço.

A cidade ainda nos atravessa, talvez mais por sua ausência que por sua partilha. Enquanto isso, nós encontramos outras maneiras de nos atravessarmos, testando métodos mais e menos efetivos de se estar junto. Porque toda festa é uma aposta, uma tentativa, um esforço de felicidade, pela lembrança ou pelo esquecimento.

. Lara Spagnol é mestre e doutora em Estudos Literários. Pesquisa os temas da cidade, da memória e da modernidade. Também leciona, escreve e revisa textos.

. ilustrações por esther az.

. esta publicação é parte da chamada pública de textos realizada pela vai ter, parte do projeto BH 121, nº0951, aprovado no Edital 2017 oriundo da Política de Fomento à Cultura Municipal (Lei nº 11.010/2016).

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